sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Resgate


 Obra  de Paul Cézanne

Amanheceu-me um sono friorento.
Faltou-lhe o desejado agasalho.
Nessa noite escura e de tormento,
que tentei pendurar no verde galho.

Não tendo conseguido tal intento,
no sonho aparecias magoado.
Prostrada, passiva e sem alento,
vagueava o olhar atormentado.

No quarto apertado senti o cheiro.
Terra húmida de fortes chuvadas.
Natureza irmanada em calafrio.

Não sei de teu errante paradeiro.
Procuro-te no meio das levadas.
P´ra te resgatar aquém do meu rio.

OF- 13-10-14

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Vazios


Obra  de Edvard Munch

Espaços transparentes nos olhos – vazios.
Sensações angustiantes nos corpos – vazios.
Tempos indiferentes nas horas – vazias.
Sentidos errantes nas mentes – vazias.

Sem chão,
sem caminho,
sem companhia…
Palpável é o vazio
da emoção,
do carinho,
da invernia.

É o olhar que percebo na tua cercania,
nas charnecas lodosas,
nas águas que se agitam gulosas,
soando a elogio fúnebre,
que te entendo, solidão,
perdida na multidão lúgubre.

Puro estado liquefeito,
centrifugado na solidão da insensibilidade.
Ar irrespirável e rarefeito,
como leprosa, esfumou-se a solidariedade.

O gesto chega sempre atrasado.
O doente já bem debilitado,
do desafeto expirado
não percebe que a hora havia chegado.

Há tanta enfermidade
enconchada no vazio
da suposta humanidade…

OF- 15-10-14

domingo, 12 de outubro de 2014

Dia de raízes


Ontem foi dia de raízes. De as cortar. Uma fileira de pinheiros que cresceu conforme a lei da natureza. Alto porte apesar da estreiteza do canteiro ao longo do lado poente da casa. E, mais frágeis, os cubos de granito não resistiram a esta investida. Raízes são raízes. E ainda que se corte aqui e além, a verdade é que fazem o seu caminho, enraizando-se por tudo o que puder servir de suporte no cumprimento do inexorável destino. Uma praga a que a minha incúria mental foi cega, surda e muda. Predadoras de revestimentos. Têm razão. As raízes são assim mesmo: livres, autónomas, sem dono e pátria. Não dependem de amos. A terra e a água bastam. E nisso é pródiga a natureza, embora a água não seja tão democrática na sua distribuição…
Minimalistas na decoração da sua casa. Já nascem edifício, de labirintos entrançados. Talvez queiram mesmo que nos percamos por lá! Teimamos em ignorá-las. Pensando vencê-las. Uma tontice! Somos tão frágeis  como qualquer material que se use para caminharmos mais seguros. A natureza é lei. Por que teimamos em desobedecer? Talvez devessemos voltar aos caminhos de terra batida. Chafurdar na lama. Purificar a alma.
Há algo em mim que se vai livrando de raízes, desprendendo-me de tanta coisa material. Coisas, apenas coisas! Não penso na morte. Em todo o caso, sei que não quero deixar legados pesados. Sim, daqueles que ocupam muito tempo desnecessário aos nossos descendentes. Apenas a leveza do que for essencial.
  
Odete Ferreira – 05-10-2014 
Foto de Odete Ferreira

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Da vida extraímos sinfonia

Obra de Pablo Picasso

Cabe o mundo numa praça.
Lugar ínfimo na grandeza espacial.
Tudo aí ganha sentido.
Por lá se aloja o tempo memorial.

Soerguem-se sem abrigos madrugadores.
Sono entrecortado pela música natural
dos pássaros notívagos
que vasculham sombras carnais
e dos fados soprados por bocas sensuais.

Em ritmo desapercebido faz presença,
o som do ar que vivifica
bonecos de filmes animados.
E eu, protagonista, entoo a música
de um outrora preferida.
Num ápice a praça ganha outra vida.

A cantata vem da fonte.
Verte segredos da bocarra caricatural.
Os amantes repousados
de suores matinais esfriados,
ouvem na telefonia
o amor teclado na noite fantasia.

É surreal esta orquestra
embora os instrumentos sejam visíveis.
Irrepetível em cada dia.
Audível apenas por ouvidos sensíveis
quando por ali passa a música da vida.

E como a música me eleva,
gravo pautas na praça,
danço as notas musicais,
os passantes fazem-me companhia
e ébrios de sons, extraímos da vida sinfonia!

OF, 01-10-14