quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Certezas

 Obra de Cameron Grey
Dizias que havia um tempo para tudo
e eu via o tudo em cada madrugada.
Sabia que a lua ainda reinava
e que no sonho teu desejo me tomava.

Inquietos sentidos se alojavam,
tocas bravias onde me aventurava,
um jogo a quatro mãos jogado,
no tempo que sempre se tardava.

E as giestas abriam-se em sóis
e as vinhas amadureciam o mel dos beijos.
Recolhido o pão do sustento diário,
viria o frio da conserva das carnes.

E tinhas razão. Havia um tempo para tudo.
Bastava observar o voo da passarada.
A cadência pendular das marés.
Os solstícios e a vida temporã.
Os ciclos. E os círculos dos rituais,
vácuos insonorizados desenhados
onde apenas os amantes tinham lugar.
E era deles o tempo de todos os tempos.
Faziam sentido as juras e os sacramentos
renovados no alvoroço das nortadas…

OF – 30-05-15


(Poema lido no 4.º aniversário da "Hora de Poesia", programa da Dr.ª Conceição Lima, no dia 24-10, em Vizela; trata-se da festa da poesia, entrosada com outras artes.)



terça-feira, 20 de outubro de 2015

Olhares

As primeiras chuvas, por aí. O meu rio ainda não as sentiu mas agita-se em ondinhas a lembrar que precisava de renovar as suas águas, castigadas pela ardência de um sol que endoideceu por estas bandas. E como o compreendo! Apesar de ainda estarmos em pleno verão, respiro airosa na frescura de uma brisa que me faz chegar outros cheiros e outras cores. Cobrem-se os braços mas permite-se que as pernas exibam o tom acastanhado pintado pela sedução dos leitos profusos que os areais oferecem. Disperso-me. Saem devagar as palavras. O olhar acompanha o(s) movimento(s). Há o todo e as partes. É nestas que a curiosidade me faz descarada. Retenho as particularidades visíveis e analiso a atitude. Neste breve encontro de olhares nunca saberei o que o outro pensou da minha atitude. Pelo menos, ter-se-á interrogado da razão do meu olhar ousado. Mas eu sei porque sou assim, quando me sento numa esplanada. As pessoas não são estáticas. Não são paisagem apesar de lhe conferirem significado. São dinâmicas e o espírito dos lugares. Nunca é por acaso que se almoça num restaurante ou se partilha a merenda disposta num murete de xisto. O pensamento até pode enredar-se em estratégias e conjeturas mas, quando se decide, é a qualidade do afeto que prevalece. Ainda bem! Façamos dele a rosa a que podamos os espinhos. Com precisão e com o desvelo da mãe que vigia o sono do seu filho.

Odete Ferreira – 23-08-15
Foto de Odete Ferreira 

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

No outono, recolho-me


Obra de Anna Dittmann

Caem-te as folhas numa banalidade cromática
e eu quedo-me sempre numa muda contemplação.
Mas é nesta repetição, cadência como respiração,
que me pulsa o tempo no relógio biológico do sentir.

Não sei porque me fascinas
apesar das festas acabadas.
A música, ar de rock poeirento e festivaleiro,
é avessa à tua nova sinfonia.
Recolhimento, preces de olhares doirados
no pavimento folhoso e quebradiço,
perpetua o tempo que noutro tempo me foi anafado.

Gosto deste emagrecimento.
Foram-se as gorduras do supérfluo.
Igualo-me no teu progressivo despojamento.
Afinal são apenas folhas. A espinha dorsal,
sempre digna no eterno retorno dos elementos,
é tronco imperfeito das árvores
que me abraçam num colorido afetivo.
E sei: é no outono que sigo pelos trilhos mais apertados.

OF (Odete Ferreira) – 23-09-15