sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

(O) caminho

Obra de Oleg Oprisco

Quiseste pôr-me à prova
entre os apeadeiros da longa viagem
e a espera da saída e entrada dos passageiros.
Estranhamente só eu me dava conta.
Nos lugares vazios deixavam a sua presença.
Buscava-a quando vacilava
e sempre que o interrogatório,
ondas insaciáveis de respostas,
me deserdava de raciocínio.
Tão fortes estas presenças!
Espíritos vivos, vozes de murmúrios,
rostos de rua ou de lua cheia,
gestos pantomineiros,
comédia de costumes,
gargalhadas a ecoar entre montes
ou lágrimas a encher paraísos perdidos.
Como lapas nas rochas,
apesar das águas iradas,
sabiam do seu destino
e persistiam em guiar o barco.
Era tão real o fogo-de-santelmo
iluminando o caminho!
Florido. Encantado.
E percebi.
Cada presença é minha pertença.
Cada momento é parte e todo.
De mim…

OF – 31-01-16

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Entre quem é


Não Os senti chegar. É sempre assim. Nunca se anunciam. Também nunca Os toquei. Conheço-lhes as manhas, por isso já nem disfarçam uma pretensa capacidade de surpreender. De dez em dez anos, entram na História para poupar palavras e fôlego. Ao Homem, claro. Ao Universo, tanto faz. Pelo menos à ideia que dele tenho, tão relativa quanto ingénua. A minha filosofia, vulgo vida, não passa de um rabisco fácil de redesenhamento numa outra que virá. Por isso, só a mim (e a uns poucos) é que Eles têm sentido. Cada Um é narrativa de muitas narrativas. Com índices longos e vivazes. De dez em dez anos, também Os abrevio por décadas. Automaticamente. Mas, este ano, estou mais reflexiva e não me apetece abrir um novo índice sem lhe criar uma identidade. Até por causa das estatísticas. Como cidadã, tenho o dever de me preocupar. Qualquer dia, ao ouvir que uma sexagenária fez isto ou aquilo, estarei de consciência tranquila. Assumo o meu novo estado. União de facto. Com a década. Doravante, o caminho poderá ser ziguezagueante e convém estarmos unidas. Para o que der e vier.
Estou feliz. Ela também.
“Daqui a dez anos, renovaremos os votos”, dissemos.
E Eles, que nunca se anunciam e são, naturalmente, desapegados, sorriram. Pareceu-me mesmo que piscaram o olho à nova inquilina. Afinal, não havia tempo a perder. 

Odete Ferreira – 17-02-16

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Reinvenção dos invernos

Obra de Vladimir Kush

Vigiei os andrajos por muito tempo
não fossem alguns raios de sol tardios
despertar os gestos antes de dezembro.

Nada deve perturbar o silêncio natural
de dias esquecidos pelas neblinas duradouras
e a despedida dos amantes.

A mudança das estações tem apeadeiros certos,
ainda que a incerteza
possa confundir os relógios de corda.

É na espera das celebrações
que um homem é mais Homem
e uma mulher será mais plena.

É na espera do homem das neves
que a criança dos frios reinventará os invernos.
Todos eles. Os do tempo e os da vida.

OF – 20-01-16